Na narrativa histórica das mulheres que participaram da LALN, está patente a ideia de inteligência política, devoção e entrega abnegada à causa nacional, movida pela necessidade de as mulheres se mostrarem capazes e de terem surpreendido positivamente a direcção da Frente e aos soldados, homens com quem ladeavam nas bases.
Isabel Maria Casimiro* e Withney Osvalda M. Sabino **
Foto extraída do livro “50 anos do destacamento feminino” de Pachinuapa et al.
“Cinderelas do Nosso Moçambique” – Quem são as Veteranas da LALN?
Cinderela ou gata borralheira é dos contos de fada mais populares do mundo, que vem sendo escrito e produzido em diferentes versões. [1] A versão mais conhecida é a escrita por Charles Perrault em 1697 divulgada pelo mundo em filmes e desenhos animados produzidos pela Walt Disney na qual Cinderela é uma jovem que por ser órfã acaba por viver com a madrasta má e as suas duas filhas. Cinderela é empregada na sua própria casa, passa por maus tratos, mas não perde a sua bondade e o sonho de uma vida melhor e de se casar com um príncipe encantado.
Durante este trabalho Cinderela surge quando uma das entrevistadas fala sobre o que sabe das veteranas da luta e sobre a sua participação na luta armada: “Tudo que sei sobre a participação da mulher na luta armada é tudo história que é contada na escola (…) Até já esqueci da história porque hoje até já tenho outras versões que acho mais realistas. O que eu sei da mulher da luta armada é que aquelas que acharam que a causa lhes era válida, largaram tudo, e fugiram para lá para se formarem .(…) OK, conseguiram ir a luta armada, contam a história que elas lutaram, mas acredito que há outras que lutaram mais do que estas que são tao mediáticas, que foram apagadas. A própria história da Josina é-nos contada numa vertente muito fantasiosa, é a cinderela do nosso Moçambique, tudo que sei é isso” (Entrevista a Luísa, Maputo aos 14/06/2017).
Na narrativa histórica das mulheres que participaram da LALN, está patente a ideia de inteligência política, devoção e entrega abnegada à causa nacional, movida pela necessidade de as mulheres se mostrarem capazes e de terem surpreendido positivamente a direcção da Frente e aos soldados, homens com quem ladeavam nas bases (Manceaux, 1976; Pachinuapa & Nanguedye, 2009). Domina um determinado scrip sobre a história da FRELIMO, “uma única história” – “vencemos, tudo correu bem e assim continuará após a independência”, “sentimo-nos com um qualquer homem combatente”, reproduzido com maior ou menor intensidade de acordo com os momentos políticos.
São os extratos desta narrativa única, masculinizada e produzida para reforçar os discursos políticos “uniformes” que fazem parte das referências de grande parte das e dos jovens, pois são parte do currículo na escola primária nas disciplinas de história e de língua portuguesa. Josina Machel “cinderela do nosso Moçambique” é parte incontornável desta história e dos conhecimentos de cultura geral. O dia 07 de Abril (dia da sua morte) é feriado nacional Dia da Mulher Moçambicana. Os detalhes que se sublinham quando se fala da vida e obra de Josina Machel referem-se à sua entrega abnegada ao trabalho e ao seu casamento com Samora Machel, 2º presidente da Frelimo e 1º presidente da República Popular de Moçambique, depois da sua independência em 25 de Junho de 1975, o que de facto não parece muito diferente da Cinderela.
“Não tenho nenhum conhecimento sobre ela, sei muito pouco sobre participação da mulher na luta armada, sei que o que os livros dizem, que ela foi nossa heroína, lutou e foi esposa do presidente Machel é muito básico e que 7 de abril é porque Josina morreu então é dia das mulheres”. (Entrevista a Géssica Macamo graduada em Ciência Política, Maputo 04/12/2017).
Contudo, para além de Josina Machel e de outros nomes sonantes de mulheres que se fizeram à luta de libertação nacional, muitas outras juntaram-se à causa e contribuíram, algumas bastante jovens, acompanhando a família, fugindo de perseguições e ataques, atraídas pelas promessas de estudar, outras capturadas pelos guerrilheiros da FRELIMO.
A história oficial esqueceu muitas outras mulheres que tiveram um papel importante em várias fases. A LIFEMO – Liga Feminina de Moçambique – 1ª organização de mulheres, criada por mulheres, na Tanzania em 1963, foi omitida da história oficial. A sua Presidente era Celina Simango, esposa de Urias Simango que foi Vice-Presidente da FRELIMO, mais tarde considerado traidor após a crise de 68 que levou ao assassinato de Mondlane.
Foto extraída do livro “50 anos do destacamento feminino” de Pachinuapa et al.
Um outro dado importante é que como Mondlane refere no seu livro e também é relatado em entrevistas e documentos do Arquivo da FRELIMO, foram as mulheres que solicitaram à direcção da FRELIMO um papel mais activo, através do treino militar. O primeiro grupo de DF treina em 1965 mas a história oficial refere a criação do DF apenas em 1966, pelo Comité Central[2]. De maneira geral as mulheres do DF constituem um grupo de cinderelas distantes das jovens feministas. As mais próximas do poder ocuparam e ocupam posições chave na OMM e no governo e são por isso destacadas, as que se encontram afastadas das zonas urbanas e dos circuitos do poder também estão distantes das jovens, marcadas pelo sentimento de abandono, esquecimento, não cumprimento de promessas da luta armada (cinderelas que não chegaram ao estágio de princesas).
No que respeita ao conceito de Emancipação o grupo de “libertadoras da nação” não é homogéneo, e o conceito de mulher combatente ou militante também não. O que ouvimos das veteranas é que, “conseguimos a libertação do país, participámos em todas as frentes, somos iguais aos homens, provámos que somos capazes de fazer tudo o que um homem faz. Não há lugar à diferença nestas narrativas.
No geral considera-se a igualdade entre mulheres e homens na luta e depois da independência, ainda que se refira que algumas mulheres não respeitam os homens. Ouvimos muitas vezes as veteranas da luta referirem, “agora já me sinto como um homem, participando na luta como soldado”, como já referido.
As jovens feministas têm um conceito de emancipação que implica transformação das relações de género, dos papéis tradicionais de homens e mulheres, questionamento do patriarcado, do colonialismo e do machismo.
As jovens feministas por nós entrevistadas não têm como sua referência de luta pela libertação da mulher, as consideradas libertadoras da pátria. Foi o processo de construção feminista das jovens entrevistadas que levou ao reconhecimento da participação das antigas combatentes na caminhada de emancipação e a compreensão do quão difícil deve ter sido para estas mulheres ocupar um espaço tão masculinizado quanto o exército.
Um diálogo com elas seria muito necessário, enfrentar esse sistema e participar na luta, se até hoje ainda há separação de espaços, então imagina, participar da luta e hoje serem praticamente anuladas pelo sistema, deve ser…! Essas pessoas existem, mas não se sabe nada delas. Até compreendo que não seja porque elas não queiram falar, acho que se formos ter com elas terão vontade de passar o legado delas.
Há uma necessidade de se resgatar isso, não sei se fazendo biografias, não sei como se faria mas há necessidade de transmissão de legado, principalmente para quem está nos movimentos feministas ou problematiza questões de género”. (Entrevista a Géssica Macamo graduada em Ciência Política, Maputo 04/12/2017)
Eu acredito, já é toda minha imaginação e meu feminismo, que mesmo para elas saírem de casa não foi fácil, mesmo para elas se colocarem lado a lado com os homens e dizerem que são capazes de pegar em armas também não foi fácil. Não sei onde, mas li que mesmo assim elas eram colocadas apenas para tratar de assuntos menores, quando eram os feridos, logística, e eu estou curiosa porque num papo, a Nzira disse olha tem aquele pessoal da OMM que nalgum momento se sentem frustradas, por que os ideais delas quando entraram para a luta armada, esta a ser apagado por um sistema, são forçadas a esta situação de se apagarem para não passarem a imagem de discordância de ideias e o partido tem que ser coeso (Entrevista a Luísa, Maputo aos 14 de Junho de 2017).
As veteranas da luta, sobretudo as mais próximas do poder, aparecem nas datas históricas da Frelimo – 1962, 1964, criação do DF em 1966, da OMM em 1973, independência 1975 – não apenas na capital mas também em outras regiões de Moçambique, mas nem sempre dialogam com as jovens gerações, criticadas entretanto por serem ignorantes sobre o seu papel fundamental na libertação da Pátria/Mátria. Constatámos entretanto que, quanto mais afastadas da capital, da Nação – designação para a cidade capital, Maputo, usada por moçambican@s da região norte e centro de Moçambique – a sua narrativa é muito mais crítica e livre, desamarrada dos heróis implantados na capital de Moçambique.
Não tenho muito a dizer, só recomendo que não deixes este trabalho no caminho. Quando vocês crianças que estão lá, veem-nos fazer lembrar do que fazíamos ficamos felizes se pararem vamos ficar como areia molhada. Se você deixar nós vamos ficar tristes com areia molhada na cara, quando vocês crianças veem nós conseguimos lembrar alguma coisa. Se vocês pararem de vir vamos ficar tristes, embora os donos não lembrem estamos felizes de saber que as crianças sabem que para estudarem foi necessário nós lutássemos. Muito obrigada (…). (Entrevista a Catarina Mbuana, antiga combatente, Niassa, 18/09/17). [FIM]
Este artigo (aqui publicada sua segunda parte) é a versão resumida de um artigo apresentado no Colóquio Internacional DecliNações, Questionando identidades nacionais, género e sexualidade que teve lugar nos dias 29 e 30 de Outubro de 2018 na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (no prelo).
Referências
Cabral, Amílcar (1969) “Seminário de Quadros”. Fundação Amílcar Cabral. Acesso a 08/03/2018.
Casimiro, I. (1986) “Transformação nas Relações Homem/Mulher em Moçambique: 1960–1974.” Tese de Licenciatura em História, Departamento de História, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo. (MIMEO).
Manceaux, Michelle (1976) “As Mulheres de Moçambique” Lisboa-Portugal, Arcádia.
Pachinuapa, R. & Nanguedye, M. (2009) A vida do Casal Pachinuapa. JV Editores p.57
Entrevistas
Catarina Mbuana, antiga combatente, Niassa, 18/09/17.
Géssica Macamo graduada em Ciência Política, Maputo 04/12/2017.
Luísa (pseudónimo), Maputo, 14/06/2017.
[1]A sua origem tem diferentes versões, sendo a do escritor francês Charles Perrault, de 1697 a mais conhecida, baseada num conto italiano popular chamado La gatta cenerentola ( a gata borralheira). A mais antiga é originária da China, por volta de 860 a.C.. Existe também a dos Irmãos Grimm, semelhante à de Charles Perrault.
[2] Esta é a data comemorada a 4 de Março e que inicia para a OMM o mês da Mulher.
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* Docente e pesquisadora da Universidade Eduardo Mondlane, UEM, Centro de Estudos Africanos, CEA
** Graduanda em Ciência Política, Faculdade de Letras e Ciências Sociais, UEM Assistente da pesquisa “Diálogos em Confronto”.